quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

SENTE-SE E AGUARDE! - parte um


HAVIA uma praia, que na verdade era uma cidade, que na verdade era um país, que na verdade era o mundo de todos aqueles que ali viviam. E não eram muitos, pequenos amontoados familiares perdidos e que achavam que existe até onde os olhos poderiam ver. Não havia data, não havia presente, tampouco passado. Não havia história, havia apenas o que havia ali: pessoas que se dividiam naqueles que pescavam, naqueles que cozinhavam os peixes, naqueles que comiam os peixes e naqueles que não tinham nada na cabeça, os chamados loucos.

Um casal de loucos daquela pequena aldeia se casou, numa noite, sob a luz de uma fogueira, sem testemunhas, pois nem mesmo as estrelas apareceram aquela noite. A noiva disse que elas não foram porque não deu tempo de preparar os vestidos, ele, como louco, acreditou nela, afinal, sabia que como louco, deveria dar crédito a um outro louco. Ah, a lua-de-mel!, que nem tinha o nome de lua-de-mel, porque não sabiam o nome que se dava para a lua, muito menos sabiam o que era mel, ali possivelmente, nunca havia antes pousado uma só abelha, quem dirá um enxame para produzir mel. Ela foi debaixo de um dos mais vistosos coqueiros. Balançado com o vento, caiu-se um coco, que de dentro dele saiu um menino. Um bebê-menino, que ao tocar o solo, permanecia-se dormindo, envolto de uma placenta, que era na verdade uma água, daquelas que pagamos para nos refrescarmos nas praias, nos verões, oriunda do coco. A mulher, já dizendo ser sua mãe, o pegou, o abraçou, o envolveu com o carinho necessário, e nesse momento, o bebê viu quem seria o casal que ele veria e sentiria para sempre. Dali nasceu o amor.

O médico da aldeia, que atendia em troca de peixes e cocos, estava mais para um benzedor, um mago daqueles que habitam em aldeias, foi a segunda pessoa a pegar o bebê. O pai recusara, tinha medo de tocar e machucar uma criatura tão pequena. Mal sabia ele que nem com toda a força do mundo poderia machucá-lo.

Após alguns exames, futucar por todo o corpo do garoto, o médico disse aos pais que se dirigissem para a ante-sala, pois faria alguns exames mais detalhados, que viria ser necessário, uma vez que não é todo dia que se acha um menino dentro de um coco.

A espera trouxera ao casal de loucos a angústia, que na ante-sala aumentava ao ler em letras garrafais o escrito ‘sente-se e aguarde sua vez’. Imagina se para os que pescavam e comiam peixes já era demasiado esperar, o quão era para um louco, pessoa sem limites e sem medo, aguardar, e ainda por cima sentado. Esperar é para quem não fez nada na vida. A partir do momento que se faz algo, já não se pode esperar, afinal, nada se pode ter a perder, pensavam os loucos e entoavam os líderes dos sindicatos dos loucos. Sentar-se, para os que pescavam e comiam os peixes, era nada mais do que aguardar, subliminarmente. Sentar era, por si só, acalmar o coração, através das pernas. Sensação que para os loucos era irremediável. Coração só se acalma quando morre, era a frase de um filósofo morto a pedradas, louco – pois somente alguém louco é morto a pedradas. Essa e muitas outras frases eram possíveis de se encontrar pichadas pelos muros da cidade, antes do atual prefeito, desta vez eleito pelos que comiam peixes, decretar o fim dos muros. Tudo era de todo mundo, logo não havia necessidade de limitar. Chamaram o prefeito de comunista, mas ele era apenas alguém que estava de barriga cheia, afinal, levava 37% de todo o peixe pescado e comprado para comer que se passava entre a fronteira do mar, da terra e do céu.

Não demorou, o casal de louco pirou ao ver um casal de pescadores folheando uma revista de celebridades. A capa era uma modelo semi-nua enrolada em uma corda de pescar, certamente, imitando uma sereia pescada pelo leitor. Riu a mulher louca. Ninguém pescaria uma sereia, senão um pirata, ela disse alto.

- Sim, mas piratas não existem, sabemos disso. – disse a mulher do pescador, já sem paciência para a falta de paciência dos amalucados, como, preconceituosamente, eram chamados.

- Por isso que a vida de vocês é assim. Pescam pela manhã, vendem o peixe pela tarde e a noite, com o dinheiro, compra o mesmo peixe que pescou, só que mais caro do que o preço que vendeu.

O louco, querendo evitar que a discussão se prolongasse e partisse para cunhos sociais e políticos, puxou a esposa pelo braço.

Uma senhora sentada por ali, fazendo tricô, que também aguardava, percebendo que os ânimos se exaltaram e logo propõe uma conversa óbvia, o que esperam ansiosamente?

- Nosso filho, acaba de nascer de um coco caído do coqueiro.

- Mas onde já se viu um filho de um coco. – disse a mulher pescadora, inflamada de raiva, direcionando todo o seu mal-humor para a louca.

- Piratas e filhos vindos de coco existem. Cada um conta a sua história da maneira que quer... – defendia com diplomacia o pai.

- A senhora também é pescadora? – a louca, evitando olhar para a pescadora do outro lado.

- Sou aposentada. Mas fui louca na infância e na minha adolescência... Com o tempo, a gente descobre que não vale a pena rotular nada. Por isso me aposentei cedo...

- Ex-louca, onde já se viu. Uma vez louca, sempre louca. – mais uma vez, provocando, a rabugenta.

- Devia se calar, se não quer conhecer o desgosto de não ter os dentes da boca.

- Te entrego para o ministério marítimo e será presa.

- Loucos não serão presos nunca. – Confirma a pior verdade para um pescador, a senhora, que sobre os óculos fundo de garrafa, encara a pescadora, que se aquieta, a contra-gosto, possessa.

A enfermeira abriu a porta e foi de encontro ao casal de loucos, avisando que poderiam entrar, o médico já os informaria sobre o que se passava com o pequenino bebê.

- Ele tem um problema.

- Uma doença, doutor?

- É grave?

- Acalmem-se, primeiro sentem-se. Vamos conversar.

Os dois sentaram-se, nervosos, pálidos, onde ao fundo era possível ver o bebê sorrindo. Como poderia estar com um problema se já estava até sorrido? Um recém-nascido que sorri, certamente, tem de tudo, menos um problema, uma doença.

- Seu filho tem uma degeneração nos tecidos e nas células nervosas.

- Isso mata?

A morte sempre foi um medo dos loucos, que tentam fugir dela, afinal, a única coisa que condena, legitimamente, a liberdade é a morte.

- Não. Mas é preciso cuidado.

- O que dá? Ele vai ser louco como a gente?

- Ainda é cedo pra dizer se ele será louco. O seu problema não tem nada a ver com ser louco ou pescador.

- Então o que é? – angustiada, a mãe segurava o vestido, sobre as pernas, enrolando-o com os dedos, em sinal de desespero e nervosismo.

- Ele é incapaz de sentir dor.

- Como?

- Ele não sente dor alguma.

- Mas isso não é um problema! Isso é ótimo, doutor.

- Isso é uma deficiência. Ele terá que se acostumar com ela. E não é ótimo, não. É contornável. Não sentir dor não o faz imortal ou incapaz de se machucar. Ele pode se machucar, mas nunca chorará, nunca sentirá a dor. E para uma criança isso é bem provocativo. Afinal, ele poderia continuar um jogo de futebol, mesmo após ter uma fratura exposta no fêmur, por exemplo, e ainda por cima ganhar de goleada.

- E tem cura?

- Não. Mas como disse, é preciso cuidado. Muito cuidado. Ele precisa ser vigiado, ele precisa aprender a lidar com isso.

Para demonstrar o problema, já que o médico preferiu não chamar de doença, uma vez que doença está relacionado a dor, o que não é o caso dele, pegou uma pequena agulha e espetou no braço do garoto, que ao ver os pais espantados, sorri, gargalha. Várias tentativas, em umas duas agulhadas, um pouco de sangue escorre, mas o menino não sente nada. O médico tenta dar uma batida na bunda do bebê, que não reage.

- Por isso ele não chorou ao nascer. – recorda o pai.

- Mas ele chora?

- Sim, chora. Ele não sente as coisas, mas sentirá as pessoas. – sentencia o médico.


continua.

0 comentários:

Postar um comentário