segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

SENTE-SE E AGUARDE! - parte três


Eis que em um dia, com tudo para ser um dia comum, os dois sentariam, e passariam horas a fio, conversando sobre o passado, presente e futuro, foi interrompido por ele querer ver o que ela carregava nos braços. Que livro seria aquele que ela lia todos os dias há meses e não terminava? Ao perguntar, ela se esquivou, mudando de assunto, até que em um momento de descuido, em que, de impulso pegara o livro. Sabia que era errado, se ela na queria falar sobre, não deveria insistir, mas a curiosidade humana vai muito além. Não deveria ter nada de mais ali. Ele estava certo, não havia nada demais ali, apenas uma resma de folhas em branco, com uma capa dura. Não havia título, nenhuma letra sequer.

- Um livro em branco?

Ela envergonhada, saiu correndo dali. Não era para ter sido visto, ela estava profundamente magoada com ele, talvez a maior de suas mágoas, e a maior de todas já vividas anteriormente por alguma garota de sua idade. Doía, seu coração ardia em brasa. Ele não sabia o que fazer, era tão confuso para ele do que para ela. O que sentia por aquela garota de olhos azuis? Gratidão por olhar para ele sem ser um louco cheio de cicatrizes? Egocentrismo por ter alguém no mundo que se interesse, com realidade, em saber o que se passou com ele, ser o alvo de todas as perguntas até o momento e ainda poder responder com qualquer receio, pois não havia ontem, nem certeza do amanha? Ou era amor, amor puro, sem querer nada em troca, que lhe fizeram ficar tonto e ser força para continuar seu ambicioso fado?

A noite chegou e com ela as duvidas se multiplicaram, assim como a dor no coração da menina, que na janela, chorava ao som de uma canção triste. Não jantara naquela noite, havia a melhor das comidas, o manjar do que poderia haver de melhor. Sua madrasta, atenciosamente, batera a porta umas quatro ou cinco vezes para chamá-la e ela dizia estar um pouco enjoada. O pai logo fora vê-la e ao perguntar o que acontecera, resolveu contar tudo. Sempre teve uma abertura com o pai, não que não gostasse da madrasta, mas havia uma liberdade com ele muito grande, gostava muito na nova esposa do pai, ao contrário do que se possa imaginar, ela era realmente um doce, fazia tudo para a garota e a tratava como filha.

A surpresa do pai foi um pouco acima do que ela esperava. Onde já se viu, uma garota do seu nível apaixonada por um louco, morador do rebaixo dos homens? Ele já te tocou? Me conte a verdade, porque se já, eu mando espancar-lhe para nunca mais atrever tocar em uma garota que não seja da eira dele. Não quero a senhora andando por aquelas bandas de novo, muito menos quero a senhorita dando conversa para loucos novamente. Quer destruir o nome de nossa família?

Retirei algumas sentenças que foram ditas, em resumo, para que se possa melhor entender e não ser entediante, porque a conversa acima durou horas e só aterrorizou ainda mais a garota. Doendo seu coração de uma forma que não pudera suportar.

Mas o sol sempre nasce. Era verão, nascia mais cedo para sorte dos dois. Mais para a sorte dele, que foi vê-la nas docas e não a encontrou. Somente o vento e brilho do Sol refletido no oceano. Isso se sucedeu por dias e dias. A esperança ainda resistia no coração dele, que a aguardava. A esperança é algo corriqueiro e engraçado, não é mesmo? Ela nos faz crer que algo pode vir com tanta veemência que já o tomamos como verdade, de forma que caso não venha, se torna uma decepção, o que não deveria ser, afinal, ele não iria vir mesmo. Além disso, a esperança adia os planos, na espera. Esperar é algo que quem possui a liberdade sofre por fazer, então, é possível qual foi a dor que ele sentiu? Muito maior do que qualquer dor que se possa imaginar, nem das que cause maiores cicatrizes em todo o mundo. Doía não saber nada. Doía saber que o mundo seguia, enquanto ele esperava ali, algo que não sabia se viria, e tenderia a decepcionar.

Num impulso, ele decidiu ir até a casa dela, fato que não seria difícil achar. Poucas pessoas de olhos azuis moram por ali. Uma meia dúzia de casas, que em seus grandes estandartes era possível identificar, não somente a cor dos olhos, mas toda uma história de vida, e principalmente, quais alimentos entravam na dieta daquela casa.

Para o tom folhetinesco aderir a essa história ainda mais, o garoto não entenderia o que estaria a se passar naquele dia. Pela primeira vez, em vários dias seguidos, a menina daria um sorriso, um sorriso de verdade, não daqueles amarelos, aquele que desafoga toda a dor e toda angústia moradora daquele pobre coraçãozinho. Tudo seria por conta da chegada de seu primo, que mora um pouco distante... Amigos de infância, os dois têm uma forte ligação, e ele fora ali para convidá-la para o seu casamento que iria se realizar em poucos dias. Ela seria, pela primeira vez na vida, testemunha de um casamento, igualando ao das estrelas. Caminhavam pelo jardim, alegres e felizes, como em um lapso de vida, em que todos os males foram esquecidos. Ela sorria, o primo gargalhava. O garoto que não sentia dores apenas olhava pelas frestas do portão dourado, avistando ao longe, no jardim a cena intimista.

Sempre ouvia falar dos familiares e vizinhos, loucos, que o amor dos seres que não são loucos são volúveis, daqueles que se amam e se encantam em poucos segundos e se desfazem mais rapidamente do que isso. Lembrara uma comparação de que os que não são loucos são explicados pela física: “tudo que aquece rápido, esquenta rápido”. Assim era com tudo, principalmente com os sentimentos. Ele nunca entenderia, por mais que quisesse ser um pescador, afinal ele era louco, e a loucura é química, não física.

Quimicamente falando, o seu coração estava cheirando a enxofre, ardido, forte e incurável. Queria poder ter o dom de não sentir as pessoas, como não sentia as coisas. Trocaria a pior dor do mundo, uma mutilação, uma quase-morte, doença incurável, qualquer das maiores punições do mundo, que não sentiria, por não sentir aquilo. Ele sempre achou que era de pouco valor o dom de não sentir dor. De que adianta, tenho as marcas, pensava. Além do que, tudo nessa vida sara. Aquela dor ele sentia que não iria sarar. Poderia ser guardada em um baú, em um quarto escuro, entre seus diversos pensamentos, mas ainda sim, estará lá.

Andou, caminhou como nunca antes, deve ter percorrido todo o mundo, sem sair de uma mesma rua, ou duas. Não parecia questões de horas, parecia ter vivido todas as estações do ano: primavera, verão, outono e o inverno, que insistia em não passar.

- Eu vou buscar o que não sei: a cura da dor do amor.

Falava essas e outras palavras soltas, sem sentido, até que viu seu projeto de barco, já corroído pelas algas, pela maresia e pelo fétido mofo. Como poderia ter esquecido de seu sonho? Como poderia ter aberto mão de ir além do horizonte e desvendar as dores de outros amores, senão o carnal, nem o espiritual, o amor próprio? Seus desejos jogados às cinzas. Mas mal sabia ele que se resolveria na mesma noite. Noite em que passou em claro, em força, em dor e em suor. Como quem salvava uma vida em uma mesa de cirurgia, com toda destreza, ele construiu o seu barco, o melhor barco do mundo, pois era o barco dele. O barco que lhe levaria até o horizonte.

Imaginem uma noite infinita que se findaria. Agora, imaginem uma construção de uma torre que chegaria ao céu? Melhor que isso... É chegar até o seu próprio horizonte. E com esse desejo, ele foi até o dia raiar, quando encontraria o seu barco pronto, com a vontade de velejar, até chegar na misteriosa margem de lá do mundo.

Preferiu não dizer nada a ninguém, nem ao menos um adeus, ou um volto logo. Não sabia se voltaria, assim não haveria esperança. Pois até mesmo no adeus mais forte que existe, ainda resta esperança. No seu caso, restaria apenas confirmação de que ele foi. E estará lá, eternamente.

O mar estava calmo naquele dia, pouco revolto, o que fez com que a viagem durasse pouco tempo, mas o tempo suficiente para aprender a mecânica do próprio barco, percebera que errara em algumas coisas na construção, mas não ligara, estava dando para cumprir sua meta. Numa próxima, se houver próxima, ele saberá onde não errar novamente. Com as coisas são tão práticas, a gente nunca erra duas vezes.

O que mais lhe emocionou foram um grupo de gaivotas que dançavam um estranho, mas bonito balé no céu em sua volta. Apesar de confuso e de improvisado, parecia ser ensaiado há anos, não se esbarravam, cada uma dia seu espaço aéreo, que não se cruzava com o da outra, e muito menos atrapalhava a apresentação. Não havia a preferida, por mais que houvesse uma ou outra com uma desenvoltura maior, ou até mesmo uma idade mais avançada, mais técnica, não sabia. Todas, além de espaço, tinham a sua contribuição para o todo feliz e harmonioso, elas não disputavam uma atenção maior. O céu era mais completo por causa delas.

O percurso, que achava que seria longo, foi curto. Não durou mais que alguns minutos até chegar na margem de lá. Era uma pequena ilha, minúscula, dava para ver por inteiro apenas ao desembarcar lá, algumas árvores de médio porte, vegetação rasteira, visivelmente nenhum animal, a não ser um ou outro pássaro que dava um vôo rasteiro por ali. A vista de sua terra, de lá, era magnífica, linda, deslumbrante, todos os bons adjetivos do mundo, de tão encantador que era. Tanto pelo gosto da conquista, quanto pelo prazer notável ao chegar lá. Tudo era belo, sedutor. Talvez, tenha demorado mais admirando a primeiro momento o mundo de lá do que para chegar lá. Tantos ‘lás’ ao ponto de não saber qual é o aqui em que estava, tudo não passava de um grande encontro entre o que há de perfeito no mundo. Ainda bem que nunca ninguém quis vir até aqui. Seria um desperdício ver os homens de olhos azuis ou, ainda, os pescadores colocando suas marcas por ali. Fincando sua bandeira de achado.

Questões políticas, sociais, culturais e de outras instâncias passaram por sua cabeça, até o momento em que fora surpreendido por uma enxerida aranha que fazia diversos furos, mordendo-o, perfurando-o com suas garras. Num susto, impulsionado apenas pela visão aterrorizante, e não por conta da dor, que seria mortal em nós, pobres humanos, ela a chutou para longe, que cambaleante, ergueu-se e correu. Impactado pela ânsia de ver o fim daquela maldita que o deixara sangrar sem motivos, pegou um pedaço de uma vara e correu, pela areia da praia tentando alcançá-la. Foi uma corrida com obstáculos, mais ágil, ela se esquivava por entre as frestas e galhos, já adentrando a pequena mata dali. Mas num pulo, ele a alcançou, assumindo a postura de vencedor, levantou a madeira como se levanta-se um troféu, ou até mesmo uma faca, um prêmio de um assassino ao vencer sua vítima. Como que em uma sensível diferença entre o sentidos animais e humanos, ela já o olhava com a derrota em sua face, seu olhar, ou o que era possível sentir dele, transmitia medo, ou ainda o mais difícil para um animal tão orgulhoso quanto uma aranha: a piedade.

Num arranque, ele cravou a paulada, que fora freada no ar, com brutalidade, por uma mão humana. Assustadoramente, humana.

- Não faça isso.

Após o susto, e a digestão do susto, pudera ver o dono daquele braço, um garoto, pouco mais velho que ele, talvez uns dois ou três anos. Não mais que isso. Mas bem, isso não importa diante da situação tão surreal que viera depois. Uma venda tampava seu olhar, como um pirata, mas com os dois olhos cobertos. Um pano negro, com detalhes avermelhados, já sujo, já marcado pelo tempo.


Continua...

1 comentários:

Mimari disse...

Nossa, quem seria essa pessoa que vendou os olhos do rapaz? ><

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