terça-feira, 29 de dezembro de 2009

SENTE-SE E AGUARDE! - parte quatro, o final.

- Ela é uma boa criatura.

- Ela é uma aranha.

- E uma coisa impede de ser outra?

- Aranhas não têm sentimento.

- A Amora tem.

- Amora?

- Dei este nome a ela.

- Você mora aqui nessa ilha sozinho?

- Não com ela. Quem é você?

- Sou um pescador... Quer dizer, um louco que resolveu ser pescador, resolvi aventurar-me na vida, me conhecer e conhecer o que se passa do lado de cá.

- Pronto, agora viu.

- Você mora sozinho aqui?

- Chega de tantas perguntas.

O rapaz da venda abaixou a mão e a aranha adestradamente subiu ali, como se houvesse achado o seu melhor refúgio. Logo, os dois foram saindo, por um caminho de gravetos e folhas amassadas, por entre a mata, um pouco mais densa ali. Na dúvida, o aventureiro preferiu ir atrás, afinal, não foram feitas todas as perguntas que buscam respostas. E seguiu os dois, até chegar a uma cabana abandonada, velha, corroída. O estranho casal entrou enquanto o jovenzinho preferiu ficar a esperar fora, despercebido. Acompanhar o dia-a-dia de alguém tão solitário seria interessante, apesar de um pouco monótono, pensava.

Minutos depois, o homem vendado volta e grita:

- Se for pra ficar aí olhando, é melhor entrar e terminar o que quer.

Assustado com tanta agilidade e sentido aguçado do outro, este entrou. A casa não trazia nenhuma novidade do que se poderia perceber por fora, aliás, em geral todas as casas são assim, pelo menos pelos lados de lá. Casas não são como as pessoas, ela são por dentro exatamente o que representam por fora. A não ser quando algum artista resolve fazer a sua vanguarda por ali, mas não era algo comum. O cheiro de mofo era quase reconfortante comparado ao visual, todo bagunçado, sujo e repleto de teias, possivelmente vindas de outra moradora dali.

- Não se assuste com as teias, e tome cuidado, Amora fica furiosa quando desfaço um de seus fios. Ela demora horas, são desenhados da maneira mais perfeita. Sabe como é, essa casa é mais dela do que minha.

Ele falava, enquanto o garoto, com os pés com o sangue já coagulado, espantava-se e admirava-se com todos os detalhes. Seu olhar era quase fotográfico, tinha certeza, que por mais que o tempo passasse, ele nunca se esqueceria do que viu ali.

- Sente-se, vamos cuidar do seu pé. Fique tranqüilo, Amora não é venenosa. A dor passará em poucos minutos.

- Eu não sinto dor alguma.

- Estranho, das vezes que fui atacado por ela, a dor durou uma hora mais ou menos, depois, fica dolorido apenas se tocar.

- Eu não sinto dor alguma, não apenas essa dor.

- Han?

- Nasci assim. Não sinto as coisas que me tocam, tenho várias marcas.

O rapaz resolve conferir, passando a mão no rosto. As cicatrizes pareciam escritos em pedra. Uma ostentação desnecessária, pensou ele, mas preferiu não falar.

- Estranho. Bem, de qualquer forma, vamos cuidar disso daqui, antes que infeccione. – Foi ele falando, no caminho de buscar alguns medicamentos. – Se não tratar, pode dar até febre.

- Muito obrigado e desculpa qualquer coisa.

- Não agradeça, não estou fazendo por você. Se você precisar ficar acamado, terá que ficar por aqui mais um tempo, até melhorar. Sendo assim, é melhor que vá embora imediatamente.

- Sua estupidez não se faz necessária, desculpe falar, mas já falando.

- Você entra na minha casa, quase mata a minha aranha e deseja que o trate bem?

- Mal é que não precisa.

- Se não fosse tão curioso não estaria aqui, nem teria boa parte dessas suas cicatrizes. Por acaso não sentir dor o faz não sentir medo?

- Por que pergunta?

- Ué. Apenas você que pode fazer perguntas?

- Eu tenho medo, de tudo, só que prefiro mais enfrentar o meu medo. E você? Sente medo de alguma coisa?

- Existe alguma coisa aqui para eu sentir medo?

O outro rapaz olha para em volta de si e não encontra resposta.

- No começo, confesso que senti medo da Amora. Mas após dezenas tentativas de matá-la, ela conquistou meu respeito. Como ela não é venenosa, e é incapaz de me matar, e eu idem, decidimos dar uma trégua. Vamos nos dando bem até que dure o momento de um partir. Nos respeitamos, convivemos bem no mesmo espaço. – Após passar um pano com um remédio nos pés do garoto, ajeita a sua venda, que devido a posição que se encontrava, acabou caindo sobre o nariz.

- Desculpe me intrometer mais uma vez, mas por que da venda?

- Nasci assim.

- Ninguém nasce com uma venda...

- Ninguém nasce sem sentir dor.

Calou-se.

- Nunca tirou a venda?

- Nunca, nasci assim.

- Você pode tirar a venda e ver o mundo, facilitaria a sua vida.

- Não tenho interesse.

- Você nunca experimentou tirar a venda, experimente! É mágico.

- Que parte do ‘eu nasci assim’ você não entendeu?

- Ninguém nasce com venda.

- Ninguém nasce sem sentir dor.

- Eu nasci de um coco e você?

- Eu nasci de uma concha do mar, como uma pérola...

- E sempre esteve aqui?

- Nascido e criado aqui.

- Sozinho?

- Completamente. Até a Amora aparecer. Ah, eu que dei esse nome a ela. Pois nosso primeiro encontro foi logo após eu comer algumas amoras que estavam caídas sobre o chão. Eu achei que ela fosse uma, peguei e no caminho até minha boca, ela atacou.

- Salvou-se de virar amora.

- Mas virou uma Amora. E ela gosta desse nome...

- Acho que sei porque você é assim.

- Assim como?

- Fechado, limitado.

- Quem disse que sou assim?

- Já pude perceber.

- Nasceu sem percepção também?

- Você tem medo.

- Medo? Eu não tenho nada.

- É. Acho que nem medo você tem. Você não sente nada. Nasceu sozinho, viveu sempre sozinho. Sozinho morrerá. Nunca viu o que se passa a sua volta, apenas viu o que se passa dentro de você. Você é vazio. Absurdamente vazio. Sozinho demais...

- Você não está falando nenhuma novidade! Eu sempre soube disso. Assim como você, eu nasci sem sentir...

Minutos de silêncio se fez necessário até digerirem o que se passou na conversa, longa, porém necessária de apresentação. A paz foi quebrada, quando ao perceber um mosquito zumbindo em seu ouvido, num só tapa, o jovem sem sentimentos, matou o mosquito. O cadáver estava em suas mãos e fez-se então um cortejo. Acho que uma cerimônia canibal, de entrega aos deuses, o corpo do mosquito. Colocou o corpo dele sobre uma das teias e logo, Amora foi se alimentar.

- Acho que a única criatura que você sente é essa aranha.

- Eu não sinto nada por ela. Apenas a respeito, mas se você falasse que também comia mosquito, creio que nem a Amora, muito menos eu, iríamos nos importar em cedê-lo para você.

- Você não sabe o que está perdendo em se arriscar sentir. É bom demais.

- Se é tão bom, porque você não continuou lá em sua terra?

Silêncio.

- Como você construiu essa casa?

- Eu a encontrei, abandonada, com todos os medicamentos, alimentos necessários para viver um bom tempo... Quem sabe uma vida toda. Acho que você já está melhorando, não é?

- Sim, estou...

- Então está na hora de partir.

- Sinto inveja de você. – uma lágrima escorre sobre as cicatrizes.

- Não é tão bom sentir? – ironiza, o sem coração.

- Algumas coisas. Outras, a gente acha que é, mas não são. Só se sabe o tamanho da dor, quando se sente.

- Acho todos os sentimentos uma perda de tempo. Além de ser todos atrelados a sofrimento, a dor. Já acho suficiente poder controlar a dor que sinto ao ter um graveto enfiado em minha unha.

- Minha mãe diz que tem dor que é gostosa de se ter. Acho que é por aí. O Amor é uma dor gostosa de se ter...

- Mas que dói muito depois, senão não seria dor.

Mais silêncio.

- Deveria ir embora antes de anoitecer. – apressando o seu “convidado”.

- Não sei se quero voltar. Lá me traz muitas lembranças de dores...

- O amor lhe doeu?

- Muito, mas acho que encontrei uma nova forma de amar. Não me leve a mal, de maneira alguma, mas nesse momento estou amando você. Não a sua figura, mas o que você representa para mim.

- Agradeço seu gesto, mas não posso retribuir. De forma alguma, seja amando-o de volta, seja deixando-o ficar. Essa ilha já é pequena demais para mim e para Amora.

- Eu faria o possível. E o impossível para lhe mostrar o amor, se você tirar a venda, poderá encontrá-lo...

- Você está assim, porque achou a solução para o seu problema de lá. Não sentir mais. Viu em mim o que precisa pra não sofrer e chorar lá. Mas lembre-se, não sentir dor, não impede que não infeccione o ferimento.

Levantou-se e saiu.

- Eu te acompanho até a praia.

Os dois caminharam em silêncio, a passos de formiga, era como se não pudesse deixar aquele momento passar. Na cabeça do coração frio, só passava a utilidade que seria morar ali sem sentir dor. Já que não sentia dor, nem haveria motivo para sentir amor ou qualquer outro sentimento por ninguém, seria perfeito, indomável, quase eterno.

Já na praia, eles se puseram a levar o barco para o mar. O barco parecia mais pesado agora. Na volta de qualquer viagem, tudo parece mais pesado. Não acredito que seja por conta do número de itens que aumentou, mas é porque nós estamos cansados e fartos de carregar mais coisas em nós mesmos.

- Eu vou aguardar. Quem sabe algum dia eu não volto e você já saberá o que é sentir? Temos toda a eternidade...

- Talvez, nem a eternidade seja capaz de me fazer mudar.

- Não sabemos. Isso que me faz querer ser sempre um louco. Não saber e viver o agora. E por agora, esqueci por alguns momentos, meu passado.

- Você não tem passado. Quem não sente dor não tem passado...

- Nem você, quem não tem saudade não tem passado.

Duras palavras mais uma vez cortavam a relação tão curta dos dois. A dureza das palavras não feria nenhum dos dois, já que não haviam planos de nenhum dos lados, apenas desejo de ter o que o outro possui. As palavras eram verdadeiras.

- Até quando você vai usar essa venda?

- Até sempre.

- Se eu pedisse pra tirar e prometesse a você que o que você vai ver é o que há de mais belo no mundo, você tira?

- Eu não acredito em você.

- E se eu dissesse que todas as amoras são roxas e que a sua aranha é amarela?

- Mais um motivo para eu nunca ter tirado a venda. Eu não a conheceria.

- E contenta-se a uma hora achar uma nova aranha venenosa sem ao menos saber se é uma frutinha ou uma aranha? Com dor ou sem dor, morrer é ruim.

- Morrer é ruim pra quem guarda sentimentos pelo que existe.

- Eu sei de um sentimento que você tem.

- Eu não tenho sentimentos.

- Orgulho. Além do medo.

- Eu não tenho medo, apenas não tenho vontade.

- E o orgulho?

- Eu não tenho orgulho...

- Se não tem, porque não mata a Amora ao chegar em casa?

- Porque sente orgulho de saber que está numa disputa empatada. E será muito ruim perder para uma aranha com nome de fruta.

Ele estava certo. O jovem tinha medo e tinha orgulho. Era orgulhoso, como ninguém. E num impulso só, arrancou a venda de seu olho. De súbito tentou em poucos segundos ver e entender tudo que se passava por ali. O rosto cheio de cicatrizes do outro garoto era algo que o fez parar para ver por um bom tempo, não entendia o que era, não sabia o que sentia. Mas pela primeira vez, sentia.

- Tudo é tão...

- Maravilhoso?

- Horrível. Apesar de não ter sentimentos, eu tinha imaginação... Eu tocava nas coisas e imaginava do jeito que quisesse que fosse. O mundo era de outro jeito, tão melhor.

- Como assim? Esse lugar é o mais bonito de todo o planeta.

- Isso porque você não conhecia aqui... Até você, em poucos instantes, já tinha uma anotação mental sua. Você não era assim, tão... horrendo!

- Uma pena que você descobriu só os sentimentos ruins.

Já no barco, ele seguiu seu rumo, olhando para trás, o garoto, que conheceu as lágrimas pela primeira vez, sentado no chão de areia, assustado e triste. Num olhar para a sua terra, como num badalar dos sinos da meia-noite, onde os encantos se quebram, ele sentiu uma dor, um prego que, vazando para fora do barco, por ser mal-colocado, perfurara seu dedo. Doía, pela primeira vez. Ele gostou, ele sorriu. Era tão diferente, era tão bom, era tão humano. Decidiu encostar e curtir a sua dor por um tempo.

Em terra firme, o povoado estava em choque com a súbita morte de uma garota de olhos azuis, que se suicidou nessa tarde, ao saber que seu amado, partiu sem rumo. Num gesto de egoísmo, ela escreveu o nome dele em uma carta, onde explicava que o livro em branco, além de um pretexto para ir de encontro com a lembrança de sua mãe, falecida há muito tempo, era para poder encontrar em suas páginas, tudo o que quiser... Caso voltasse, além de descobrir que por páginas em branco, perdeu e fez perder a paz de estar junto de outra pessoa, ele não seria dela, já findada, mas também não seria de nenhuma outra pessoa. Pois quem gostaria de amar um louco que estará preso eternamente?

Na ilha, o jovem, dia após dia, chorava e olhava o horizonte. Não voltou para dentro da mata, não reconhecia o caminho. Teria que se cegar, coisa que pensou em fazer. Mas ao fechar os olhos, percebia que a imagem que já viu antes era a que ficou gravada. Não adiantava esforço para imaginar coisa melhor. Não queria entrar também para evitar, ao máximo, de encontrar Amora. Deveria ser uma grande desilusão ver sua única companheira, por quem nutria um respeito eterno, de maneira diferente da forma como imaginava. Ele conheceu os dois sentimentos mais inúteis que existem: a esperança e o arrependimento.

No meio do mar, ficou, parado, sob o balanço das ondas, nem lá, nem cá, para sempre, o garoto que agora sentia dor, sentia saudade, sentia amor, sentia raiva, sentia tudo. E volta e meia, para se alegrar, cutucava o prego com alguma parte do seu corpo. Descobriu na dor, seu maior entretenimento.


FIM.

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