segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

SENTE-SE E AGUARDE! - parte dois

O tempo não demorou a passar, tanto para aqueles que ali estavam, quanto para os pais da criança, quanto para ela mesmo. Não se sabia mais das pessoas que foram apresentadas até aqui. Certamente, hoje, visto em conta dos anos, a única que, possivelmente, estará morta é a senhora aposentada como louca. Mas acho que não deu tempo de se apegar a nenhum deles, ainda, até mesmo porque a narrativa foi rápida e curta até aqui, o que sugere uma proximidade maior com os que continuam. Desculpem-me por esse adendo que corta a narrativa ao meio, mas que sirva de informativo que tudo dito até aqui serve, exclusivamente, para situar quem continuar. A verdadeira história, que se sugere ao título, ao que se relata com o passar do tempo e cuja crônica chegou ao ouvido desse que vos escreve, dá início ao aniversário de 11 anos desse garoto.

Após apagar onze fogueiras, ritual comum naquela comunidade, para celebrar a passagem de onze invernos rigorosos e sem muitos peixes, uma dádiva divina, o garoto sem dores resolveu brincar de pular sobre uma das fogueira, era freqüente, desde que ele tomara consciência de que era incapaz de sentir dor, que assustasse as pessoas a sua volta, com pequenos cortes, ferimentos, quedas e queimaduras, como fez agora... O fogo nem ardia, embora deixasse marcas. Marcas que permaneceriam por toda a eternidade em seu corpo. As dores nunca existiram, mas as cicatrizes estavam lá. E ele seria capaz de contar, em tom de ironia todas as suas peripécias. “Ah, essa daqui foi quando eu pulei um dos últimos muros que existiam na cidade, cheio de caco de vidros, todos meus amigos acharam que doeu muito, mas que nada, só tive que ficar sem forçar o pé direito por um tempo, senão perderia muito sangue e perder sangue não é algo muito agradável, nem pra mim.” “Essa marca foi quando o leite quente, fervido pulou sobre meu corpo, minha mãe saiu gritando, me jogando em uma bacia de água, quase morreu coitada, mas depois que passou soltei grandes risos.” “Essa daqui foi quando eu quis assustar o dono do açougue. Peguei a faca e passei, fingindo-me fincar contra minha mão. Ele teve um piripaque.” “Essa daqui foi quando nossa vizinha, descuidada, deixou o cachorro fugir, eu o aticei até o ponto dele me atacar, devorando minha perna. Deu até polícia e jornal. Fiquei famoso, mas não doeu nada.”

Nossa, você tem muitas cicatrizes, muitas marcas. Diziam todos que o conheciam, afinal, ele era só cicatrizes, deformado de tanta falta de dor. Mas ainda faltava algumas dores que ele ainda não sentira.

Após a cerimônia, ele fizera uma pergunta ao pai, que era incomum a um descendente de louco ter sequer pensado sobre.

- Se eu quiser ser um pescador, eu posso, pai?

Assustado, o pai não sabia o que dizer. Categoricamente disse não.

- Mas o que nos faz louco é exatamente a nossa liberdade. Aquilo que nada nos prende a poder fazer.

- Toda liberdade é efêmera.

- Liberdade é liberdade. E se eu a tenho, quero escolher.

- Mas deixando de ser louco para ser pescador, deixará de ser livre, filho. E ninguém em sã consciência escolhe não ser livre.

- Sabe, pai, acho que a liberdade não está em ser algo, mas em poder ser aquilo e deixar de ser a hora que quiser, se quiser...

- Mas os pescadores não podem nunca ser loucos, eles não são livres. Eles pagam impostos!

- O senhor falou sobre sã consciência, um louco tem consciência?

- Sim, uma consciência livre. Liberdade onde só se é capaz ter se souber usá-la. E decidir ser um pescador não saberá usá-la. Vamos supor um exemplo: uma determinada pessoa é livre, mas ela comete um erro, deixará de ser livre, pois será eternamente condenada àquilo, poderá ser independente, como sempre foi, mas nunca livre novamente. Abala-se a confiança, o crédito que foi dado aos loucos, o da liberdade. – Filosofava o pai, como um sábio conhecedor da cultura local.

- E que nos dá esse crédito?

- O caráter humano de todos nós. Nós nascemos livres, nascemos loucos. Alguns se curam e se tornam, de maneira chata e careta, outras coisas. Daí, perdem seu direito de liberdade.

O menino foi aos poucos absorvendo aquilo tudo. Dias passaram, até que ele surgiu com a mesma idéia. Ele queria por que queria ser um pescador, o que poderia até mesmo ir contra toda a educação que fora lhe dada. Aliás, o que ia contra tudo aquilo que ele era até o momento.

- Quero ter o direito de ser um pescador. Um pescador livre. Coletar peixes, vender os que quero, para comprar peixes. E os que eu não quero, eu dou pros pobres, pros loucos, ou eu mesmo como.

- Tire essas idéias malucas da sua cabeça!

- Loucos têm idéias malucas...

- Não queremos te perder.

- Não perder alguém é privar a liberdade dela?

- E para quê você quer ser um pescador? – o pai cortou para uma pergunta direcionada, até mesmo por não saber responder a pergunta anterior do filho, uma boa tática de argumentação, utilizada pelos loucos de hoje em dia.

- Quero ser um pescador para chegar lá!

Apontava o garoto para um pequeno fragmento de terra visto de longe, quase perdido pela maresia que cobria a imagem até lá, sobre o mar azul, um espelho do céu também azul.

- Você é livre aqui, quer abrir mão da liberdade para chegar lá para quê?

- Para responder essa minha dúvida...

- Que dúvida?

- A liberdade me leva até lá?

- Nem mesmo um pescador foi até lá.

- E por quê?

- São aficcionados pelo dinheiro. Precisam pescar muito, para vender muito, para comprar pouco e comer pouco. Não tem tempo para essas coisas...

- Por isso, nós, loucos devemos ir até lá.

- Temos nossas preocupações aqui.

- Quais preocupações, pai?

- Defender a nossa liberdade.

- Ela já não é garantida?

- Nada é garantido. Tudo é mantido! – Após uma pausa dos dois olhando à misteriosa ilha, o pai corta o silêncio. – E como você vai chegar até lá, nadando é impossível por conta dos tubarões. Precisaria de um barco.

- Por isso quero ser um pescador.

- Mas um pescador precisa de pescar, não de se aventurar.

- Então serei o primeiro pescador aventureiro de nossa história.

O que era um sonho já havia virado um diálogo. De um diálogo, o garoto com os anos se passando, as fogueiras acendendo e apagando viraram planos. Planos viram metas que se cumprem com o tempo. E o tempo era o maior inimigo da liberdade.

Se tornar um pescador, para o garoto era algo palpável, uma ambição atingível em poucos instantes. Crer bastava para ele. O que importava é estar lá, chegar, conquistar. O tempo foi passando, todo sonho é regado com muita técnica muita força, muito suor e trabalho, uma coisa que os loucos consideravam quase maluquice, com perdão ao trocadilho. Juntar tábuas, coletar gravetos, cordas, pregos e arrumar um martelo. Ah, foi esse martelo que lhe redeu bons momentos de glória e de amor...

Pouco após completar 16 anos, o jovem já um pequeno homenzinho, sentira-se atraído por garotas das mais diversas idades. A sexualidade normal e costumeira, a puberdade batendo-lhe a porta. Entretanto, suas diversas aventuras e dores, travessuras de prazer, lhe causara certo espanto. As loucas jovens e mocinhas não queriam nada com ele, pois almejavam um louco com sonhos mais fixos, enquanto as futuras pescadoras não o queriam, por ser um louco, mais louco que os demais loucos, por ter o sonho de não ser mais livre, além do quê, prezavam muito às aparências, e isso, não era o que ele tinha de melhor. Afinal, cicatrizes não atrai as pessoas.

Errado. Cicatriz atraiu a ternura de uma jovem de olhos azuis. Filha de um daqueles que intermedeiam a venda e a compra dos pescados, a que tinha em sua mesa, não sobras como ele, mas o que lhe desejar. E o desejo, quando é ilimitado, sabe-se que se torna um capricho. Para ela, não. Nada daquilo era tomado para si. Seus olhos azuis na imensidão do mar acreditava que tudo era para todos, todos eram para tudo e que nada merecia ser rotulado como um tudo, um todo ou um nada.

O grande encontro foi exatamente por causa das cicatrizes, talvez por não ter nenhuma, buscava algo que não tinha. É meio assim que funciona as leis do amor, o completar, o que não tenho. Amar é invejar. Ela invejava muitíssimo bem a dor, as experiências que aquelas marcas representavam. Só se sabe que algo é ruim após usar, era o que estava na lei daquele mundo. Não se poderia julgar nada como ilegal, até que fosse completamente utilizado por todos e visto, com unanimidade, como ruim... Foi assim com suicídio. O Código Penal punia com extremo rigor quem se suicidava. Além de não ter o direito de honras, nem de lágrimas o corpo era jogado no alto da pedra dos mortos, e logo seria devorado por abutres. Um fato engraçado era que caso alguém suicidasse, mas deixasse uma carta de suicídio, revelando os motivos, caberia a polícia uma investigação e punir o que motivou, ou quem motivou a morte da pessoa. Se tornava homicídio doloso. Era comum, depois disso, alguns apaixonados dissidentes serem punidos pela morte do ser que fora amado outrora... Uma espécie de vingança que os abandonados por amor poderiam realizar, pois a punição era severa. Talvez, um motivo para o qual era possível ver casamentos duradouros naquela região, mas alguma infelicidade também. O medo de ser preso o faria ser livre com a dor. Nem preciso entrar no mérito de grandes traições, não é mesmo? O preço da liberdade, no amor, era viver eternamente sobre vigia.

Mas voltando aos fatos como se ocorreram, a menina saiu de casa aquele dia, como em todos os outros para ler o seu livro nas docas. O garoto resolveu passar por ali, pois sabia que sempre um dos pescadores, após se aposentar jogava os materiais num enorme aterro que se localizava no caminho. Ficara feliz, achara um velho martelo, enferrujado, corroído pela maresia. Na volta, a menina, estabanada, por ter perdido a hora, divagando na literatura, corria esbaforida e tropeçara no rapaz, ocasionando um pequeno acidente, o martelo que ele carregava, escorregou e caíra sobre o seu dedão, o que em alguém normal resultaria em uma tremenda dor e sucessivos palavrões, mas nada disso aconteceu, apesar de uma unha quebrada e um pouco de sangue escorrendo, se misturando com a areia.

- Perdão!

- Não foi nada.

- Vamos, eu te acompanho a um hospital.

- Já lhe disse que não foi nada.

- Como não. Você sangra.

- Vai passar, nenhum sangramento é eterno.

- Mas e a dor?

- Não sinto dor.

Assim, com essa pequena deixa, os dois se encontrariam por sucessivas tardes, uma após a outra, atrasando o sonho de construir o barco e se tornar pescador, e fazendo a garota, por vez, até esquecer o livro, que seria o motivo para ela ir até as docas. Nos primeiros dias, o assunto era sobre as dores, logo depois, a curiosidade dela não teve mais fim e o afogou com tantas perguntas. Ele respondia todas, com brilho nos olhos e explicava a origem de cada pontinho em seu corpo, de cada marca, de cada cicatriz. Algumas rendiam risadas que duravam horas a fio. Outras emocionavam que fazia até mesmo a menina passar a noite em claro imaginando como teria sido. Quando a noite não era em claro, a noite era em sonho, sonho igual. Aquele sonho de quem se está apaixonado, um sonho desejo, um sonho que é um reflexo daquilo que você gostaria que fosse no dia seguinte. Mas, seja por conta olhar de paixão ou por ser uma relação em progressão, o dia seguinte era sempre melhor do que qualquer melhor sonho poderia imaginar.


CONTINUA...

0 comentários:

Postar um comentário